Sobre as Adolescentes Detidas nos EUA  
 

 

Li no Jornal GGN esse artigo sobre o caso recente das adolescentes brasileiras que viajaram desacopanhadas aos EUA, foram barradas na imigração e enviadas a um abrigo para refugiados, onde ficaram detidas sob a custódia do governo americano. Em nenhum dos episódios foi dada uma explicação da parte das autoridades sobre o motivo da detenção, tendo sido alegado sigilo, e as mães dessas adolescentes só puderam libertá-las após complicados trâmites legais. Interessei-me pelo caso e percebi detalhes e paralelos que me encorajaram a fazer uma investigação ampla. Exponho aqui os dados que encontrei e as conclusões que obtive.

Os casos reportados foram os de Anna Beatriz Teophilo Dutra, 17 anos, que foi detida no aeroporto de Detroit em 18/04/2016 e ficou no abrigo até 03/05/2016; Anna Stéfafane Radeck, 16 anos, detida igualmente no aeroporto de Detroit em 11/08/2016 e ficou no abrigo até 01/09/2016, e Liliana Matte, 17 anos, detida no aeroporto de Miami em 22/08/2016 e ficou no abrigo até 08/09/2016. Pesquisando na internet, eu encontrei um caso mais antigo, ocorrido em 2013 e que foi esquecido pela mídia: o de Verônica Letícia da Silva, 15 anos, detida no aeroporto de Miami em 27/12/2012 e permaneceu no abrigo até 24/01/2016. Não encontrei nenhum caso anterior com essas características.

Em todos os quatro casos citados acima, as meninas acreditavam ter todos os documentos necessários para a viagem, mas tiveram a entrada recusada pela imigração nos aeroportos. Não foi informada a causa exata da recusa, sendo dito apenas que elas não podiam estar desacompanhadas, e por serem menores, não podiam ser deportadas imediatamente, devendo permanecer em um abrigo até que um juiz decidisse o seu destino. Não foi reconhecida a autorização para viajar desacompanhada escrita no passaporte. Consultadas, as autoridades informaram que se tratava de um procedimento padrão conforme os regulamentos, sem nada extraordinário. Mas a ausência de notícia de casos anteriores desmente essa assertiva. Ao que parece, houve uma mudança de paradigmas quanto ao recebimento de visitante brasileiros nos EUA a partir de 2013, e um recrudescimento este ano.

Ninguém duvida que os EUA têm motivos pertinentes para serem rigorosos quanto à entrada de estrangeiros em seu país, mas a irracionalidade, e mesmo a desumanidade desse procedimento sinaliza alguma coisa inquietante, que pode surtir mais consequências imprevistas e merece uma investigação. Fiz uma pesquisa nos noticiários, blog´s e redes sociais dos personagens envolvidos; não entrei em contato direto com as adolescentes por não desejar importuná-las, mas entrei em contato com algumas de suas mães, e vou expor agora o que descobri na forma de um histórico para cada uma das jovens.

Verônica Letícia da Silva

Mora em São Paulo, no bairro do Rio Pequeno, zona oeste. Em seu aniversário de 15 anos ganhou de presente de uma tia avó, Marli Volpenhein, que mora nos EUA, uma passagem para Miami, a fim de passar as férias e conhecer os parques Disney. Ao desembarcar no dia 27 de novembro de 2012, foi questionada pela imigração quanto aos motivos da viagem. Sem saber inglês ou espanhol, foi levada para uma sala e disponiblizado um intérprete. À noite foi enviada a um abrigo para menores refugiados em Miami. À família foi informado que ela não podia entrar nos EUA porque faltava um documento escrito em inglês autorizando a transferência de sua guarda para a tia. O documento foi providenciado e enviado ao consulado brasileiro em Miami, mas não obteve a liberação de Verônica.

Lembro de haver lido essa notícia em um jornal na ocasião, e achei estranho. Ao fazer essa pesquisa agora, fiquei sabendo do desfecho. Verônica foi liberada para regressar no dia 25 de janeiro de 2013, tendo permanecido detida por 58 dias, bem mais do que as outras três adolescentes, isso porque sua família era humilde e sua mãe não pôde deslocar-se pessoalmente aos EUA nem pagar um advogado a fim de agilizar sua liberação. Foi informado que sua deportação teria que ser autorizada por um juiz e uma audiência foi marcada para o dia 31 de janeiro, mas no dia 23 Verônica foi liberada sem maiores explicações. Passou o natal, o ano novo e seu aniversário de 16 anos, segundo suas palavras, chorando, chorando e chorando.

"Cada dia era uma notícia ruim. Diziam: você não vai voltar. Você só vai voltar daqui a três meses. É impossível você voltar"

No abrigo, Letícia recebeu um uniforme e foi submetida a regras: acordar às 6 horas, arrumar o dormitório e banheiros, depois aulas e atividades. Aparentemente o lugar tinha boa estrutura e parecia menos rigoroso que o abrigo onde as outras três adolescentes ficaram, este em Chicago. Mas as restrições à comunicação entre Verônica e a família foram rebarbativas.

Segundo contou sua mãe, a balconista Alexsandra Aparecida da Silva, ela não tinha permissão para telefonar à filha. Verônica tinha permissão para telefonar a ela apenas duas vezes por semana, por dez minutos cada ligação, no viva voz e na presença de uma testemunha. Isso significava que Verônica não podia dizer tudo o que queria.

"Tem coisas que a minha filha recua a falar comigo, eu faço alguma pergunta para ela e ela fala é, não, sim, ela não fala exatamente"

Outras informações que Verônica conseguiu passar sugerem que o tal abrigo não era tão amigável quanto parecia. Ela afirmou que as outras internas podiam receber ligações da família no dormitório, bem como fazer ligações do dormitório duas vezes por semana, sem que fosse explicado o motivo dessa diferença de tratamento. Por vezes Verônica era excluída de eventos programados pelo abrigo e tinha que permanecer sozinha no dormitório sem que soubesse ou pudesse explicar o motivo.

"Tem dias que ela fica presa no quarto (...) Dia 31 ela contou chorando que todas as amiguinhas desceram para o culto e ela ficou sozinha no dormitório. Eu perguntei porque e ela disse não sei"

A tia de Verônica, Marli Volpenhein, conseguiu localizar o abrigo fingindo que ia entregar donativos e pôde se encontrar com Verônica, mas tampouco conseguiu resgatá-la de lá. Por não conseguir acertar a pronúncia do sobrenome alemão da tia, a mãe de Verônica escutou de uma funcionária do consulado: "mas você manda a sua filha para alguém de quem você nem sabe o nome?"

Foi marcada uma audiência com o juiz para o dia 31 de janeiro, mas no dia 24 Verônica foi liberada sem audiência e sem explicação. A menina ainda levou um susto ao ouvir dizer que ainda teria que esperar 160 dias.

"Eu estava chorando, então a mulher me chamou e me perguntou porque eu estava chorando se eu ia embora no outro dia. Aí eu fiquei mais feliz"

Não mais lágrimas, de volta ao lar. Mas a foto abaixo mostra bem como a adolescente foi devastada pela experiência.

Palavras não são necessárias. No rostinho da menina está marcado cada dia de terror que ela passou longe da família. Visitei o facebook dela, e pude ver que ela é uma pessoa muito meiga, afetuosa e religiosa. Sua divisa? "Enquanto Deus for meu chão, não há quem me derrube". Deus deve ter sido o chão dela lá nos EUA. Ela não fez nenhum comentário a respeito da triste experiência, só se nota um buraco em sua linha do tempo correspondente aos dias que ficou presa. Em seguida aparecem várias postagens entremeadas de palavras em espanhol, quexando-se da falta de sono.

É o conhecido estresse pós-traumático: falta de sono, pesadelos, ansiedade. Essa menina tão amorosa começou a ser aterrorizada ainda no aeroporto, pois não sabia responder às perguntas feitas em inglês e espanhol.

"Eles estavam ficando nervosos (...) Falavam que seu eu não respondesse as perguntas eles iam me algemar e me levar para um sítio [um lugar] pior do que aquele"

Que porco diz isso para uma menina de 15 anos?

Anna Beatriz Theophilo Dutra

É de Palmas, estado de Tocantins. Quando terminou o ensino médio, os pais a presentearam com várias viagens ao exterior para que pudesse aperfeiçoar o aprendizado de idiomas, já que Anna manifestou o desejo de seguir carreira diplomática. Em janeiro ela esteve nos EUA, e em março estava na Argentina. Para julho estava programada uma viagem ao Canadá, mas em abril ela resolveu fazer uma segunda viagem aos EUA a fim de visitar uma colega em Boston. Com 17 anos na ocasião, recebeu autorização do pais para viajar desacompanhada. No dia 19 de abril, foi barrada pelos funcionários da imigração no aeroporto de Detroit, teve os motivos da viagem questionados e foi encaminhada a um abrigo para menores refugiados em Chicago.

"Cheguei tranquila e feliz. Estava indo como turista. Óbvio que praticaria o inglês, conhecendo as pessoas e os lugares, mas não tinha nenhuma intenção de estudo (...) No primeiro contato na imigração, a pessoa me perguntou, gentilmente, o que eu tinha ido fazer nos Estados Unidos. Disse que tinha ido 'turistar' com uma amiga, conhecer vários lugares. Achei que estava tudo bem, mas não..."

Nota-se que a tática é aparentar cordialidade e fazer perguntas que parecem inocentes, mas que têm o propósito de colocar o interrogado em uma posição delicada. Em seguida foi questionado com quem ela ia ficar. A funcionária telefonou para a amiga em Boston, que não falava bom inglês e atrapalhou-se nas respostas. Foi providenciado um intérprete, mas as novas respostas não foram levadas em conta porque a amiga já tivera tempo de pensar. A interrogadora mudou de tática, e passou a lançar outras suspeitas.

"Me perguntaram se eu estava indo encontrar um homem, ou algum namorado no país, se estava indo para trabalhar, ou qual outro motivo. Não quero falar que foram rudes comigo, porque sei que estavam fazendo seu trabalho. Mas as perguntas não eram perguntas de verdade, pareciam mais afirmações mesmo. É um tom do tipo 'eu sei que você tem namorado aqui, pode falar', ou 'já sabemos que é mentira, pode contar'"

Ao que tudo indica, os funcionários já emitiram um pré-julgamento na forma de várias hipóteses para estadia fora do escopo do visto, seja estudo, trabalho, tráfico humano ou até casamentos arranjados, e o interrogatório tem apenas o objetivo de induzir à confissão. Anna teve a bagagem revistada e foi questionada até a quantidade de peças de roupa que trazia. Em seguida foi informado que ela teria que passar por uma audiência em Chicago dentro de "três ou quatro dias", mas ao invés disso passou quinze dias em um abrigo para menores refugiados em Chicago.

"Quando cheguei ao albergue, colocaram um saco preto na minha cabeça para matar piolhos e pensei comigo ‘meu Deus, onde estou?’. Fiquei desesperada"

Para a mãe de Anna, a jornalista Leide Theophilo, a situação não foi menos desesperadora. Demorou três dias para que pudesse ter o primeiro contato telefônico com a filha, que estava chorando desesperada. Embarcou para Chicago, mas não pôde trazer a filha de imediato.

"Meu pássaro está preso. Eu o incentivei tanto a voar, e agora puseram-no em uma gaiola"

No abrigo, Anna recebeu um uniforme e teve que seguir uma rotina restrita, sem contato com o exterior, exceto por dois telefonemas semanais para a mãe, de curta duração, nos quais ela só dizia "Eu tô bem" mas a família suspeitava que não estava tão bem assim. Havia uma sala com televisão, mas ela não foi autorizada a acessá-la. Anna encontrou ali várias adolescentes sul-americanas que haviam sido apanhadas sem documentos em algum lugar nos EUA, mas não encontrou nenhuma outra que tivesse um visto válido e houvesse chegado pelo aeroporto como ela. Após retornar, Anna revelou mais detalhes de como era a rotina no abrigo.

“Eles têm um sistema de esgotamento físico para que no final do dia você se sinta realmente cansada e só vai dormir (...) Nossa, era extremamente gelado do lado de fora. A gente só com calça e uma blusinha de moletom, uma meia no pé e eles mandavam a gente correr. Era obrigatório correr, fazer alguma coisa. O pulmão até doía de tanto frio que estava fazendo. Era muito difícil"

O relato confirma aquilo que ficou patente desde o início: que o chamado abrigo nada mais é do que uma casa de detenção para menores. O método de provocar esgotamento físico para manter os internos quietos é bem conhecido. Umas décadas atrás estava muito em voga submeter jovens delinquentes a condições físicas extremas, tipo excursões por uma selva ou montanhas geladas, lembro que uns pesquisadores americanos (ou alemães?) chegaram a trazer ao Brasil um grupo desses jovens para uma temporada na floresta amazônica, e diziam que isso os recuperaria. Mas como Anna pôde constatar pessoalmente, o único efeito causado é manter os jovens exaustos e quietos.

A mãe de Anna foi informada de que a liberação da filha só poderia ocorrer após uma audiência com o juiz e poderia levar uns três meses, mas ao fim de duas semanas a filha foi liberada sem audiência e sem explicação, tendo sido imposta apenas a condição de sair do país em um voo sem escalas. O visto de Anna não foi cancelado. A cena no aeroporto, no retorno ao Brasil, parece a chegada de uma boa viagem.

Mas na imagem abaixo Anna dá melhor ideia de como realmente se sentia.

 

Depois, o já esperado estresse pós-traumático. Anna Beatriz ficou um mês sem conseguir dormir sozinha e acordava de madrugada perguntando 'Mãe, você está aqui? Mãe, mãe?'. Também caíram cabelos (estresse ou efeito do veneno contra piolho?) A viagem para o Canadá estava para ser cancelada, mas Anna reagiu e recobrou o ânimo. Já maior de 18 anos e acompanhado do pai, chegou a Montreal, mas na conexão nos EUA ainda teve que escutar mais algumas grosserias do funcionário americano, que declarou que se dependesse dele, seu visto teria sido cancelado. Agora está no Canadá estudando francês em uma escola, aparentemente recuperada da triste experiência.

Fiz uma pesquisa nas redes sociais pelos perfis de Anna e sua mãe, e vi ali pessoas muito distintas, cordatas e religiosas, sempre dispostas a encontrar uma justificativa pelo que aconteceu, embora tivessem todo o direito de estarem magoadas e ofendidas. Penso que, se Anna quer ser diplomata, passou com louvor em seu primeiro teste.

Anna Stéfane Radeck

Mora em Embu-Guaçu, na Grande São Paulo. Já esteve muitas vezes nos EUA, onde tem parentes, mas em agosto deste ano foi fazer uma visita a seus tios que moram em Orlando, onde pretendia passar seu aniversário de 17 anos e verificar a possibilidade de cursar o último ano do ensino médio em uma escola americana. Ao fazer uma conexão em Detroit, foi detida pela imigração. O motivo exato não foi informado, sendo dito à jovem apenas que ela não podia estar desacompanhada por ser menor, embora constasse em seu passaporte uma autorização para viajar desacompanhada. Conseguiu enviar uma mensagem aos pais contando o ocorrido antes de ter o celular apreendido e ser enviada a um abrigo para menores refugiados em Chicago, o mesmo onde esteve Anna Beatriz. A notícia circulou em vários jornais, e pesquisando os comentários dos leitores, li vários depoimentos de menores que declararam haver viajado desacompanhados aos EUA com autorização sem ter tido nenhum problema.

A mãe de Anna Stéfane foi até Chicago, solicitou uma visita ao abrigo e foi informada de que esta só poderia ocorrer em um local determinado pelas autoridades, posto que a localização do abrigo era sigilosa. No local indicado, deparou-se com a cena grotesca da filha chegando em um uniforme de presidiária acompanhada por um policial armado. Anna Stéfane estava abatida e febril, com os braços inchados após haver tomado dez vacinas à sua revelia. Só pensou em tirar a filha de lá e sair imediatamente do país para nunca mais voltar, mas teve que esperar uma audiência com o juiz. Nesse meio tempo só teve direito a dois telefonemas semanais, em viva voz e devidamente monitorados pelos funcionários do abrigo, durante os quais pôde sentir o desespero da jovem, que no entando afirmava que o local onde estava "tinha condições".

"A moça do abrigo falou, eu não sei o que sua filha está fazendo aqui"

Humilhadas, mãe e filha compareceram à audiência com os olhos marejados e ouviram da juíza um pedido de desculpas e a declaração de que os EUA estavam de portas abertas para elas. O visto de Stéfane não foi cancelado, mas mãe e filha tiveram que retornar escoltadas por guardas até a conexão no Panamá, onde só então tiveram seus passaportes devolvidos. A bagagem de Stéfane não foi restituída. Horas depois a adolescente desembarcava em São Paulo abatida e sem querer dar entrevistas. "Ela veio chorando o voo inteiro", explicou a mãe.

Chegando em casa, Anna Stéfane pôde contar aquilo que não poderia falar ao telefone em viva voz, e confirmou o que todos já suspeitavam: o chamado abrigo é de fato uma casa de detenção, e as condições não são tão boas assim. Ela não quis falar nada, mas a mãe desabafou.

"Falta alimento, falta roupa para dormir, eles não podem olhar para o lado, que tem punição"

Sentar à mesa não significava que Stéfane podia comer. Às vezes a comida era pouca e acabava antes que as últimas mesas fossem servidas, e tudo o que Stéfane podia fazer era olhar as outras comendo. Porém, mais surpreendente que o abrigo seja igual a uma prisão, é constatar que de fato, ele é pior que uma prisão. Uma prisão normal para adultos, e mesmo para menores, tem seu endereço conhecido e as visitas podem ser feitas no local. Para os abrigos, as precauções de segurança são rebarbativas. Mas muito pior que as condições materiais e a privação de liberdade é a imensa angústia derivada da sensação de não ter controle algum sobre o que se passa, uma vez que se ignora totalmente o motivo da detenção e o tempo que se permanecerá detido.

"Ela falou para mim agora no voo, eu achei que eu não fosse mais voltar. Porque eu perguntava para uma menina, a menina estava a oito meses. Perguntava para outra, um ano e meio. Perguntava para outra, dois anos. Foi me dando um desespero, eu vou morrer neste lugar"

O inusitado e o absurdo dessa situação já foi explorado pela literatura no romance O Processo, de Franz Kafka, no qual é narrado o tormento de um cidadão comum que um dia se vê preso por um crime não especificado, e a partir daí não mais se livra das malhas de um processo obscuro, que não obstante pareça burocraticamente organizado e em conformidade com os padrões civilizados, na realidade é irracional e não conduz a desfecho algum.

Quando se está preso, ao menos se sabe por que e por quanto tempo se permanecerá ali!

De volta ao lar, no aconchego de seus familiares, cabe a Anna Stéfane recuperar-se do trauma. Isso pode ser feito por dois métodos.

Primeiro, pelo esquecimento. Não comentando, não pensando mais, as lembranças aos poucos ficam enclausuradas em uma espécie de quisto dentro da mente, e não causam mais dor. Mas tal como um quisto de verdade, você nunca se livra dele.

Segundo, pela catarse. Trata-se de botar para fora, verbalizando as lembranças traumáticas. Ao contrário do primeiro método, causa dor, mas ao final você se livra totalmente do trauma. Eu prefiro essa segunda alternativa, e sugiro que a verbalização seja por escrito, que é menos dolorosa. Você pode escrever uma espécie de diário do que se passou, inclusive será útil compartilhar essa experiência com outros que poderão aprender com ela. É claro que não vai ser fácil, mas a melhor maneira de fazer é primeiro anotar todas as lembranças esparsas, e depois organizá-las na forma de um diário.

Também sugiro que você leia O Processo, de Kafka, e assista ao flime Em Nome de Deus (The Magdalene Sisters) que está no Netfix. Vão te ajudar a entender o que você passou.

Liliana Matte

Tem 17 anos e é de Boa Vista, Roraima, mas sua família é gaúcha. Talvez tenham feito parte daquelas levas de colonos, descendentes de imigrantes que em meados do século passado migraram do sul para colonizar terras no norte do país, sobretudo nos estados de Rondônia e Roraima. No ano passado Liliana venceu o concurso Miss Brasil Model, e no dia primeiro de setembro deste ano devia passar a faixa para a nova vencedora. Não pôde fazê-lo porque estava presa em um abrigo para menores nos EUA, o mesmo onde já estiveram Anna Beatriz e Anna Stéfane.

Liliana já havia viajado aos EUA muitas vezes em companhia da família. Em agosto deste ano estava em Miami, quando a mãe deslocou-se a Caracas a fim de fazer uma cirurgia nos olhos. No dia 20, Liliana foi às Bahamas com amigos da família no avião particular deles. No dia 22, ao regressar a Miami, Liliana foi detida pela imigração no aeroporto. Como no caso das outras três adolescentes, as autoridades não informaram o motivo da detenção, apenas disseram que por ser menor ela não poderia estar desacompanhada, embora Liliana tivesse autorização no passaporte para viajar desacompanhada. A mãe só ficou sabendo depois, quando ela já tinha sido enviada para o abrigo em Chicago, distante dois mil quilômetros dali.

"Fiquei sabendo que ela estava detida porque ela fez uma selfie com uma amiga em uma área restrita do aeroporto. Os policiais não gostaram disso e, durante a vistoria dos documentos, decidiram prender minha filha"

A hipótese do selfie é um tanto insólita, mas diante da total falta de outras informações, deve ser considerada. Lliliana mais tarde diria que a selfie "foi só o começo".

"Saí da Imigração 2h30 da manhã e, para me levar ao aeroporto [para o abrigo em Chicago], fui num carro fechado, carro só de ferro. Cheguei no aeroporto escoltada por três policiais com um tipo de algema. Eu não sabia de nada, de nenhuma abrigo. Ninguém conversou e falaram que eu teria de passar por um juiz"

Fica a cargo de nossa imaginação o que seria esse "tipo de algema". Liliana conta como era a sua rotina no abrigo.

"Foram duas semanas de agonia, desespero, submissão, tomando banho apenas uma vez por dia, podia ligar para minha família apenas duas vezes por semana e cada ligação de 10 minutos sendo vigiada por alguém que fala a minha língua. Podia ver a minha mãe só uma vez por semana, também sendo vigiada"

Se Liliana quisesse ir ao banheiro, tinha que pedir licença. E se voltando do banheiro passasse em outro lugar para beber água, era repreendida por não haver pedido licença. Teve que tomar as mesmas vacinas que Anna Stéfane.

"Acordava às 6 horas da manhã, tomava o único banho do dia, tomava café da manhã com pouquíssima comida e todas usavam uniforme"

Depois vinham as aulas e a educação física sob sol forte. Anna Beatriz sofreu com o frio, Liliana Matte com o calor, dentro daquela combinação de pouca comida com exercícios extenuantes calculada para deixar os internos bem tranquilos. No dia oito de setembro, sem maiores explicações, Liliana foi liberada.

Filhota resgatada, fim do tormento, a mãe levou-a a um passeio pelo lago Michigan a fim de animá-la. Mas o rostinho encovado mostra que os últimos dias não foram bons. Já no avião, Liliana publicou em seu instagram e quis saber o que significavam aquelas palavras em seu passaporte informando que a portadora estava autorizada a viajar desacompanhada ou com apenas um dos pais.

Significa exatamente aquilo que você leu, Liliana. Mas os EUA não são obrigados a acatar. A mãe também achou estranho, mas culpa a nossa lei.

"Ou porque aquela autorização ali no passaporte? De nada serve. Tmb não entendo. Por isso penso que nossa lei esta falha"

"Foi excesso de cuidado dos EUA, eu os entendo e até aprovo, sabe. Porém poderiam liberar mais rápido. ?? Falha brasileira"

Mas como pode ser falha da lei brasileira, se a lei brasileira não vale nos EUA? No entanto, um passaporte é um documento internacional, e o que consta ali escrito deveria ser validado como um todo. Podem os EUA selecionar quais trechos do passaporte reconhecerão, e quais trechos não reconhecerão? Sem dúvida que podem, como pode todo país independente. O que não podem é fazer crer que tal medida seja um excesso de zelo, como interpretou benevolamente a mãe da jovem. Pois nessa história há uma óbvia contradição: se a autorização brasileira para viajar desacompanhado não é reconhecida nos EUA, então como foi permitido o embarque de Liliana de Miami para as Bahamas? Ela deveria ter sido barrada logo ali, pois que eu saiba, em nenhum aeroporto do mundo menor pode embarcar desacompanhado sem a devida autorização.

Bonus: o caso Rhian

Vários outros adolescente brasileiros passaram e passam por situação semelhante no mesmo abrigo, e seria injusto deixar de falar neles. Nesses mesmos dias foi veiculado na mídia o caso do menino Rhian Carlos de Paula, de Barra de São Francisco (ES). Em maio deste ano Rhian tentou entrar ilegalmente nos EUA com o pai, o lavrador Alécio Soares de Paula, mas ambos foram pegos pela polícia. O pai foi mandado para a prisão e Rhian para um abrigo em Chicago, o mesmo onde estiveram as adolescentes.

O pai foi deportado em agosto. Rhian ficou quatro meses no abrigo até retornar dia 14 de setembro. Com certeza o caso dele é mais triste e ele deve ter sofrido mais, em razão da pouca idade e do tempo maior de distanciamento dos familiares. Mas não há similitude entre o caso dele e o das adolescentes. O único responsável pelas agruras passadas pelo menino foi o próprio pai, que sabia exatamente o que estava fazendo e sabia exatamente as consequências. Rhian obviamente não podia ser entregue ao pai que estava na cadeia, tampouco podia ser colocado em um avião sem que tivesse quem por ele se responsabilizasse. No caso dele, o envio para o abrigo foi uma providência de todo correta da parte das autoridades, de fato a única coisa que podia ser feita. Tal como o caso do menino haitiano de 13 anos apreendido em São Paulo, que está há um ano e meio detido em um abrigo. Não pode ser enviado à família porque esta não tem um endereço fixo, já que se encontram na Guiana Francesa em situação irregular. Ao contrário das quatro adolescentes, Rhian e este menino haitiano são refugiados na estrita acepção do termo.

O abrigo paulista onde o menino haitiano aguarda solução para o seu caso certamente não dispõe dos mesmos recursos do abrigo de Chicago onde ficaram as adolescentes, mas há uma diferença importante.

Lá o garoto pode conversar com a mãe por videoconferência. Pelo tempo que quiser.

O Abrigo

O abrigo onde as adolescentes ficaram pertence a uma organização beneficente denominada SOS Children's Village. É uma instituição muito séria, mantida por pessoas abnegadas, mas pelo menos no que diz respeito ao abrigo de Chicago, ficou claro que o escopo principal ali é a detenção de menores infratores. Vale uma comparação? Conforme reportagem da revista Veja, a rotina dos internos na Fundação Casa em São Paulo é assim.

"Os internos são despertados às 6 horas. Começam então a executar as tarefas para as quais foram escalados em rodízios que mudam periodicamente. Limpam quartos e banheiros (...) Pela manhã e à tarde, assistem às aulas em que aprendem o mesmo conteúdo oferecido na rede pública de ensino. As atividades só cessam às 22 horas, quando eles vão dormir"

Qualquer semelhança com o abrigo nos EUA é mera coincidência?

A comparação do abrigo com uma prisão ficou patente quando se viu as severas restrições à comunicação das adolescentes com suas famílias. Mas o que mais surpreende é que, na realidade, o abrigo é pior do que uma prisão. Esta é a opinião de quem conheceu ambos.

A jovem Rayane Araújo Moraes, de Governador Valadares, tinha 17 anos quando tentou entrar ilegalmente nos EUA cruzando a fronteira em companhia do marido, em março deste ano. Foram pegos pela polícia, o marido foi enviado a um presídio, mas como Rayane era menor, foi encaminhada ao abrigo de Chicago, aquele mesmo por onde passaram Anna Beatriz, Anna Stéfane e Liliana Matte. Em maio fez 18 anos e foi transferida a uma prisão de adultos. Mas não de imediato: seu aniversário caiu em um sábado, e enquanto esperava a segunda-feira, ficou confinada em uma cela isolada denominada geleira, onde só havia uma coberta fina e sem direito a banho. Já no presído, gostou da mudança.

"As restrições no abrigo são muito piores do que na prisão. No abrigo, todas éramos obrigadas a fazer as atividades determinadas por eles, em horários específicos. Mesmo quando estava frio, se houvesse atividade externa de 40 minutos, como um jogo, tínhamos que ficar lá fora. Na prisão, eu podia ficar quieta no meu canto, se quisesse, e tirar um tempo para ler um livro"

Além de ler o que quisesse, Rayane também podia comunicar-se à vontade na prisão com sua família por vídeoconferência. A reportagem completa está aqui. Qual seria o propósito de restrições tão mais severas em um singelo abrigo para menores refugiados?

"Depois de um tempo lá dentro, você começa a enlouquecer" - Anna Beatriz

Tentando entender

Tendo já obtido todas as informações que pude conseguir, é hora de compor o quebra-cabeças para ver se formam uma imagem lógica. As autoridades norte-americanas alegaram sigilo quanto ao motivo da recusa de entrada das quatro adolescentes, e afirmaram que os trâmites que se seguiram são parte do procedimento normal para o caso de menores de idade desacompanhados. Comparando caso a caso, vamos ver se esta afirmação procede.

Verônica Letícia tinha uma audiência com o juiz marcada para o dia 31 de janeiro. No dia 25 foi liberada sem audiência e sem explicação. Sua bagagem foi restituída.

Anna Beatriz foi informada de que poderia esperar pela maioridade ou aguardar uma audiência com o juiz. Depois de 15 dias foi liberada, também sem explicação. Foi escoltada até o avião. Aparentemente não recebeu de volta sua mala pois a mãe teve que comprar-lhe roupa no aeroporto.

Anna Stéfane passou por uma audiência com o juiz, que a liberou e pediu desculpas pela detenção, afirmando que os EUA estavam de portas abertas para ela. Voltou escoltada no avião até a escala no Panamá. Sua bagagem não foi restituída.

Liliana Matte foi liberada sem audiência com o juiz. Não foi escoltada até o aeroporto, e ainda pôde fazer um passeio com a mãe pelo lago Michigan antes de embarcar.

Enfim, as autoridades americanas agiram de uma maneira aleatória e imprevisível, distinta caso a caso, sem nunca dar explicações.

"Os americanos não permitem que ninguém minta, mas mentem o tempo todo" - Liliane Carvalho, mãe de Anna Stéfane

Não me parece que haja a intenção maliciosa de mentir. A meu ver, a questão é outra: as autoridades agem de forma disjunta, por estarem subordinadas a diferentes instâncias, e não estão cientes do que a outra instância fará. O consulado emite os vistos e dá as instruções pertinentes, mas não tem nenhum controle sobre o que acontecerá quando da chegada na imigração. Os funcionários da imigração barram a entrada, mas não têm ideia do que será feito a seguir com o viajante barrado, pois isso compete à polícia. Uma vez a menor no abrigo, as assistentes sociais e demais funcionárias do local não têm nenhuma ideia do que será feito nem de quanto tempo ela permanecerá ali, pois esta decisão compete ao juizado da infância. Portanto, ninguém tem as informações corretas para dar. Fica a dúvida se este processo todo obedece a um protocolo não divulgado, ou se cada autoridade individualmente age conforme sua veneta.

Outra questão não esclarecida é o real motivo do impedimento da entrada. Em cada caso, os agentes da imigração inquiriram a adolescente quanto a várias irregularidades que ela estaria praticando, e que seriam motivo para barra-la: intenção de permanecer além do prazo, intenção de estudar, intenção de trabalhar, mentir sobre o local onde ficaria, etc. Não foi especificado para quais dessas perguntas a resposta não foi satisfatória, de modo que só se pode especular. Quanto a mim, pelo que pude ler dos comentários das jovens e de seus familiares, embora o principal propósito da viagem fosse o passeio, havia também a perspectiva de aprendizado do idioma e era examinada a possibilidade de se ingressar em uma escola americana de ensino médio. Lendo comentários de leitores de jornais, eu fiquei sabendo que nos EUA, uma lei federal impede as escolas públicas de recusar a matrícula de quem estiver em situação irregular, e certamente muitos imigrantes ilegais têm se valido dessa brecha da legislação americana. Minha teoria, então, é a seguinte: os funcionários da imigração pressupunham que essa fosse a intenção das adolescentes, e quando eles perguntaram a elas se "gostariam" de estudar nos EUA, elas candidamente responderam que sim, e selaram seu destino. Fosse esse de fato o projeto que tinham em mente, bastaria-lhes ter respondido "não" à pergunta, e talvez tivessem entrado sem problema. Essa é a minha teoria. Se alguém tiver uma melhor, diga.

Conclusões

Só há certeza de uma coisa: a partir de 2013, data do primeiro caso, houve uma mudança nos paradigmas para a avaliação da entrada de brasileiros nos EUA. A ausência de casos similares anteriores a esta data prova essa premissa. Mas quais são os novos critérios definidos, isso é mistério. Aparentemente decidiu-se que menores desacompanhados não podem mais entrar, independente de terem ou não autorização para viajar desacompanhados emitida no Brasil. Se fosse só isso, daria para entender - ouvi falar de uma onda de menores da América Central que estão se dirigindo aos EUA com a intenção de se reunir a seus pais que ali vivem irregularmente, não sei se esse problema tem recrudescido ultimamente - mas inquietante mesmo é observar que apenas meninas foram retidas, nenhum menino! E todas meninas bonitinhas. Sem rodeios, podemos dizer, meninas bonitas mesmo, acima da média. E nenhuma tinha perfil típico do imigrante ilegal: das quatro, três tem boas condições financeiras, e apenas uma é mais modesta. O que pensar disto? Alguma instrução específica vinda de cima? Pura maldade dos funcionários?

De resto, a hipocrisia com que o assunto tem sido tratado é evidente. O governo americano afirma que não pode colocar menor desacompanhado de volta em um avião, porque isso vai contra as convençõe internacionais. Mas se os EUA, como qualquer país independente, tem a prerrogativa de vedar a entrada de qualquer viajante sem levar em conta qualquer convenção ou sequer obrigar-se a explicar o motivo, então também tem a prerrogativa de coloca-los de volta em um avião, e provavelmente era isso o que era feito antes de 2013. A necessidade de manter sigilo a fim de proteger a privacidade do menor também é uma inversão dos fatos. O menor em questão tem interesse em saber o motivo, quem não tem interesse em divulgá-lo é o governo americano, a fim de manter em sigilo os critérios que usa para detectar possíveis imigrantes ilegais, os quais, se fossem tornados públicos, as pessoas aprenderiam a ludibriá-los (coisa que as nossas adolescentes com certeza não souberam fazer). Mas o cúmulo mesmo da hipocrisia é a presunção de que os abrigos têm a finalidade de proteger as adolescentes. Se elas são obrigadas a vestir uniformes e tantas precauções de segurança são tomadas quanto à comunicação, então o governo americano não está protegendo elas, mas a si próprio contra elas. Sabe-se lá que ameaça vê na inofensiva adolescente, mas quanto a isso não adianta nem especular.

Enfim, a menos que se acredite que os americanos têm tal complexo de superioridade que acreditem ser os únicos capazes de proteger todos os menores desacompanhados do planeta, temos que concluir que essa política é irracional à medida em que acarreta despesas ao estado e posterga inutilmente a deportação inevitável, e seu verdadeiro propósito é mesmo castigar e intimidar potenciais imigrantes ilegais. Isso tem que ser levado em conta antes de se planejar a próxima viagem. Aplica-se aqui o Paradoxo do Soco na Cara. Conforme conta a anedota, estavam dois bons amigos sentados em uma mesa de bar. De repente, um deles comenta:

- Já pensou em uma coisa? Se nesse momento eu te der um soco na cara, veja bem, isso arruinaria nossa amizade para sempre.

O outro se surpreende com o inusitado da lógica, e responde:

- Ora, por que? Eu poderia perdoá-lo.

- Sim. Mas uma vez que eu te dei um soco sem explicar o motivo, você nunca terá certeza de que eu não posso fazer isso de novo no futuro. E eu, mesmo sabendo-me perdoado, jamais terei certeza de que você não vai querer revidar um dia.

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