O Pacificador e os Campos de Concentração  
 

Surgiu uma publicação nova nas bancas. Chama-se Nossa História, e eu espero encarecidamente que venha a durar mais do que meia dúzia de fascículos. Ela vem no rastro da revista História Viva, versão brasileira da publicação francesa, relançada entre nós após quase 30 anos. Na época, eu cheguei a ler alguns fascículos, que foram poucos, uma vez que, por estas bandas, tudo o que é de qualidade tem vida curta. Em todo o caso, foi uma surpresa agradável voltar a encontra-la, e mais agradável ainda constatar que ela já produziu uma outra revista, abordando episódios da nossa história, tema que é solenemente desprezado pela mídia. Dizem que a memória histórica do brasileiro não ultrapassa uns 15 anos, mas eu creio que essa nossa "síndrome de repetição" não vem exatamente do desconhecimento da história, mas sim de não saber interpreta-la. Se nem os nossos historiadores o sabem, que dirá o povo?

No segundo fascículo, duas matérias chamaram a minha atenção. Nem tanto por sua qualidade, mas por haverem confirmado um fenômeno sobre o qual eu já alertado em minha crônica O Poder das Palavras, e trata-se justamente disto: de como não é necessário mentir - basta escolher as palavras certas - para se produzir uma versão inteiramente deturpada passando por verdadeira.

A primeira delas foi um ótimo ensaio sobre o Duque de Caxias, uma das figuras mais manjadas de nossos livros didáticos, e precisamente por este motivo, uma das menos conhecidas. Caxias sofre da Síndrome do Homem de Mármore, aquele homem que foi transformado em uma estátua de si próprio pelos fabricantes de mitos escolares. O problema é que, para se erigir o homem de mármore, se destrói o homem de carne e osso. Caxias é conhecido pelo epíteto de O Pacificador. Mas a análise cuidadosa de sua carreira mostra que ele jamais pacificou coisa alguma; ao contrário, era um militar intransigente que não se contentava com nada menos que a derrota completa do inimigo, e em diversas ocasiões advogou a necessidade de se fazer a guerra. Sua verdadeira habilidade era outra: a capacidade de cooptar para seu lado os inimigos já semi-derrotados, bem como a criação das bases políticas para uma paz duradoura, o que incluía a ausência de represálias ou humilhações aos vencidos. Caxias era uma espécie rara, o militar que sabia ser político. De fato, em todas as vezes em que comandou a repressão às revoltas nas províncias, Caxias extinguiu totalmente o foco rebelde, mas também urdiu acordos políticos com competência, de sorte que não houve uma segunda eclosão de nenhuma das revoltas que debelou. Outro equívoco comum é considera-lo um expoente nos campos de batalha. Na verdade, Caxias jamais se destacou por suas táticas ou por sua audácia, mesmo porque nada tinha de audacioso. Também neste caso, sua real habilidade era outra: a capacidade de organização. Um bom exemplo foi a guerra do Paraguai. Quando assumiu o comando, encontrou tudo em total desordem, o abastecimento precaríssimo, o acampamento uma imundície onde grassavam doenças, com livre acesso de civis paraguaios que vendiam drogas e prostitutas sifilíticas aos soldados brasileiros. De cara, Caxias suspendeu todas as ações militares, e por um longo tempo a guerra se arrastou sem novidades enquanto ele tomava providências para sanear o acampamento, disciplinar a tropa e melhorar o abastecimento. Isto feito, pode lançar a ofensiva que encerrou de vez a guerra.

Assim como os elogios exagerados, também as críticas exacerbadas à figura de Caxias se revelaram desprovidas de fundamento. Em determinada ocasião, Caxias chegou a ser alvo de protesto de entidades defensoras dos negros brasileiros, supostamente por haver transformado os negros em "bucha de canhão" durante a guerra do Paraguai. De fato, milhares de negros foram "alforriados" e transformados em soldados, mas Caxias nada teve a ver com isso. A obra foi do ministro do interior do império, e Caxias só assumiu o comando seis meses mais tarde, encontrando o fato já consumado. Caxias chegou também a ser acusado de promover massacres, e a guerra do Paraguai foi comparada a um genocídio, mas a acusação não procede. Para Caxias, a guerra terminou quando ele entrou em Assunção. A fase de guerrilha e extermínio que se seguiu foi comandada pelo conde d'Eu, que não era militar de carreira. O papel de carrasco claramente repugnava a Caxias, que alegou uma doença e abandonou o comando. O legado mais notável de Caxias, entretanto, há anos tem sido escamoteado dos livros escolares, sobretudo durante o período autoritário: sua defesa incondicional da obediência dos militares ao poder civil. Por sua própria experiência e por sua observância do que acontecia no resto da América Latina, Caxias estava perfeitamente ciente de que a intromissão dos militares na política, longe de constituir um fator de ordenação, só faria multiplicar a desordem e as insurreições provinciais que ele passara a vida combatendo, e cujas torpezas conhecia muito bem.

O segundo artigo a que me referirei aqui é um exemplo da manipulação do sentido das palavras por anacronismo. Chama-se "Tragédia Oculta" e fala dos efeitos na população das secas no estado do Ceará, fazendo uma revelação chocante: existiram campos de concentração no Brasil!

De fato existiram. Alguém já leu O Quinze? Foi precisamente este o nome que as autoridades deram aos acampamentos mantidos pelo governo, onde se alojavam os refugiados da seca. Explica o autor do artigo:

"Em Fortaleza, a primeira destas invasões ocorreu em 1877, quando cerca de 120 mil camponeses ocuparam as principais praças e ruas de uma cidade que se procurava 'aformosear' com a implantação de jardins, cafés e edifícios de padrões europeus (...) Os acampamentos - ou 'abarracamentos' - dos retirantes passaram a ser o objeto de preocupação dos governantes, médicos e policiais, que viam nessa aglomeração de famintos e doentes uma fonte de epidemias, criminalidade e prostituição"

"Consolidava-se entre as elites cearenses uma concepção segregacionista da assistência aos pobres em momentos de seca, que levaria à criação do Campo de Concentração do Alagadiço, em 1915"

"Hoje, como ontem, a seca só atinge os menos favorecidos, vítimas, na maioria das vezes, de políticas públicas ineficazes"

O tema escolhido é interessante, mas o que se vê é uma repetição de chavões a respeito dos ricos malvados e da incúria das autoridades. A começar pela manipulação do termo "Campo de Concentração", cuja conotação de "campo de prisioneiros destinados ao extermínio" o autor antecipa no tempo e aplica-a aos acampamentos criados para os flagelados no início do século XX. Na realidade, o termo Campo de Concentração só adquiriu o sentido atual após a 2a guerra mundial. Originalmente, ele só queria dizer aquilo que efetivamente dizia: um local onde seres humanos eram "concentrados", sem referência à finalidade desta concentração. Hitler denominou os campos aonde os judeus eram enviados de Campos de Concentração, justamente porque queria escamotear a real finalidade daqueles locais. Quando essa real finalidade tornou-se conhecida, o choque foi tamanho, que o sentido pejorativo que a expressão Campo de Concentração adquiriu acabou substituindo o sentido original. O autor deseja, portanto, insinuar que o governo ergueu aqueles "campos de concentração" com a finalidade de exterminar a população flagelada, e mais, fazia-o movido pelo desejo fútil de evitar que eles enfeassem as cidades com a exposição de sua miséria...

Por mais terrível que fossem as condições de vida naqueles acampamentos, é ruim de acreditar que aqueles infelizes estariam em melhor situação esmolando nas ruas ou saqueando mercados, o que, aliás, provocaria a reação violenta dos comerciantes e da polícia. O autor só falta afirmar que a seca seria obra da elite malvada para acabar com os pobres. Não afirmou, mas esteve próximo. É totalmente desprovida de sentido a tese de que a seca "só atinge aos menos favorecidos". Quem acredita nisso desconhece que, na economia essencialmente agrária do sertão cearense de 100 anos atrás, riqueza não era dinheiro em banco, nem títulos, nem ações, e sim terra, colheita e rebanho. Os que mais perdiam com a seca eram justamente aqueles que tinham algo a perder - ou seja, os proprietários. E de fato, mais de um fazendeiro perdeu todo e terminou como retirante. Ao responsabilizar as "políticas públicas ineficazes" pela tragédia das secas, o autor parece afirmar que a solução seria uma política pública "eficaz". Estaria sugerindo a recriação da SUDENE?

Mas não percamos a esperança. A revista deve durar mais alguns números e talvez o nível dos artigos melhore.

 

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